Nem a vida nem a morte
podiam separar a Paulo do amor de Cristo. Por isso, dois mil anos depois do
início de sua peregrinação terrena, a monumental obra apostólica do Apóstolo
das Gentes continua viva e produzindo abundantes frutos para a Igreja
A vocação é um dom concedido liberalmente por Deus. E, por
vezes, compraz-se o Senhor em chamar alguém aparentemente contrário à missão
para a qual Ele o destina, a fim de manifestar com maior fulgor o poder de Sua
Graça e a gratuidade do Seu chamado. Nesses casos, apesar dos aparentes
paradoxos e à revelia do próprio interessado, cujas aspirações parecem entrar
em choque com os desígnios Divinos, o Senhor vai preparando os caminhos,
servindo-Se até dos próprios obstáculos para fazer cumprir sua Santa Vontade.
Jovem fariseu de Tarso
Nada parecia indicar que aquele jovenzinho de rosto vivo e
inteligente, de nome Saulo, viesse a transformar-se num intrépido defensor de
Jesus Cristo. Nascido em Tarso, na Cilícia, no seio de uma família judaica, o
pequeno Saulo esteve, desde muito cedo, sujeito a duas fortes influências que
pesariam grandemente na formação de seu caráter.
De um lado, as convicções religiosas que aprendera de seus
pais não tardaram em fazer dele um autêntico fariseu, apegado às tradições,
anelante pela chegada de um Messias vitorioso e libertador do povo eleito,
então submetido ao jugo estrangeiro, e zeloso cumpridor da Lei até em suas
mínimas prescrições.
De outro lado, o ambiente de sua cidade natal marcou
profundamente a personalidade do jovem fariseu. Tarso – metrópole grega, súdita
do Império Romano – tornara-se, por sua localização privilegiada, um dos
centros de comércio mais importantes daquele tempo. Regurgitava de gente,
proveniente das nações mais diversas, cujas línguas e costumes misturavam-se
sob o fator preponderante da cultura helênica. A Providência começava a preparar
o jovem fariseu para sua futura missão de Apóstolo das Gentes.
Discípulo de Gamaliel
Apenas saído da adolescência, Saulo abandonou sua pátria
para instalar-se na cidade-berço da religião de seus antepassados: Jerusalém.
Ali tornou-se assíduo estudioso das Escrituras, instruído pelo douto Gamaliel,
um dos mais destacados membros do Sinédrio. Também aqui podemos notar a mão de
Deus intervindo em sua vida, pois o conhecimento dos Livros Sagrados, que
adquiriu ao longo desses anos, servir-lhe-ia mais tarde para abrir seus
horizontes a respeito da realidade messiânica de Jesus Cristo.
Entretanto, se Saulo progredia a passos rápidos nas
doutrinas farisaicas, sob o olhar vigilante de Gamaliel, em nada pareceu
assimilar a prudência que caracterizava seu mestre, sempre cauto em seus juízos
e comedido nas apreciações. Pelo contrário, o jovem aluno dava mostras de um
exaltado fanatismo religioso, como ele mesmo confessaria em sua epístola aos
Gálatas: “Avantajava-me no judaísmo a muitos dos meus companheiros de idade e
nação, extremamente zeloso das tradições de meus pais” (Gl 1, 14).
No interior do discípulo de Gamaliel latejava um coração
sincero, à procura da verdade. Buscava-a ardorosamente, desejoso de alcançar o
pleno conhecimento dela. Não sabia que o termo desses seus anseios se
encontrava nAquele que, de Si mesmo, dissera: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a
Vida; ninguém vem ao Pai senão por Mim” (Jo 14, 6).
Sim, Saulo não poderia chegar ao Pai, Suprema Verdade, sem
passar por Jesus, o Mediador entre Deus e os homens. A afirmação proferida pelo
Divino Mestre, momentos antes de Sua Paixão, ele a veria cumprir-se em sua
vida, ainda que contra a sua vontade e apesar de suas relutâncias. E a ocasião
se haveria de apresentar justamente quando as convicções de Saulo, chocadas
ante o Cristianismo que surgia, haviam-se convertido em ódio profundo contra
este.
Encontro de Saulo com o Cristianismo
Saulo passara alguns anos fora de Jerusalém, que coincidiram
com o período da vida pública de Jesus. Quando voltou, verificou uma grande
mudança. A Cidade Santa não era a mesma que ele conhecera em seus tempos de
estudante: após a tragédia da Paixão, pesava sobre a consciência do povo e,
sobretudo, das autoridades a figura ensanguentada da Vítima do Gólgota, que
eles em vão procuravam lançar no esquecimento. E mais: os discípulos daquele
Homem não temiam pregar sua doutrina no próprio Templo, proclamando que esse
Jesus a quem haviam matado ressuscitara dos mortos (cf. At 3, 11ss.).
Tais acontecimentos não podiam deixar indiferente um fariseu
convicto como Saulo. Não compreendia que aqueles simples galileus se
levantassem impunemente contra a religião de seus antepassados, arrastando
atrás de si tamanha multidão de seguidores. Sua irritação chegou ao auge
quando, estando na sinagoga chamada dos Libertos, onde semanalmente se reuniam
judeus de todas as comunidades da Diáspora, deparou- se com um jovem chamado
Estêvão, que anunciava denodadamente as glórias do Crucificado.
Momentos mais tarde, tendo sido apresentado Estêvão ao
tribunal do Grande Conselho, Saulo escutou atentamente o longo discurso no qual
este demonstrou, por meio de exemplos históricos e de profecias, ser Jesus o
Messias esperado. O jovem fariseu sentia-se incomodado: as palavras de Estêvão
eram tão inspiradas e convincentes, que não se lhe podia resistir (Cf. At 6,
10); de outro lado, a imagem desse Jesus Nazareno, que ele não conhecera,
parecia persegui-lo, e constantemente via-se obrigado a ouvir falar a respeito,
de tal modo os seus adeptos se espalhavam por Jerusalém. Duro lhe era
recalcitrar contra o aguilhão (cf. At 26, 14). E, entretanto, Saulo
recalcitrava!
Indignado diante da coragem de Estêvão, aprovou
entusiasticamente sua morte (cf. At 8, 1) e considerou como uma honra a missão
de custodiar os mantos dos apedrejadores, uma vez que sua idade não lhe
permitia levantar a mão contra o condenado.
Surge o perseguidor dos cristãos
A partir daquele dia, o exaltado discípulo de Gamaliel não
pôs mais freio à sua fúria. Acreditando “que devia fazer a maior oposição ao
nome de Jesus de Nazaré” (At 26, 9), entrava nas casas dos fiéis e arrancava
delas homens e mulheres para entregá-los à prisão (cf. At 8, 3); chegava a
maltratá-los para obrigá-los a blasfemar (cf. At 26, 11). Não contente com
devastar apenas a Igreja de Jerusalém, foi apresentar-se ao príncipe dos
sacerdotes, pedindo-lhe cartas para as sinagogas de Damasco, com o fim de
prender, nessa cidade, todos os que se proclamassem seguidores da nova doutrina
(cf. At 9, 2).
Mas, esse Jesus a quem ele teimava em perseguir (At 9, 5),
viria a atravessar- Se de novo em seu caminho, desta vez de modo definitivo e
eficaz.
No caminho de Damasco
Podemos imaginar a ânsia do jovem Saulo ao aproximar-se de
Damasco, antegozando a hora de saciar sua cólera no cumprimento da missão que
se propunha. Mas eis que, subitamente, uma luz fulgurante vinda do Céu
envolveu-o e a seus companheiros, derrubando-o do cavalo. Ali, caído por terra
e cegado pelo resplendor dos raios divinos, o orgulhoso fariseu não pôde mais
resistir ao poder de Cristo e declarou-se vencido: “Senhor, que queres que eu
faça?” (At 9, 6).
De perseguidor que era, poucos instantes antes, passava a
servo fiel, pronto para obedecer aos mandatos do Divino Perseguido. Quanta
glória para o Crucificado! Por um simples toque de Sua graça, transformara em
Seu Apóstolo um dos mais ferventes discípulos daqueles que haviam sido seus
principais contendores, durante sua vida pública.
Ajudado por seus companheiros, Saulo ergueu-se do chão.
Entretanto, mais do que levantar-se do solo, surgiu em sua alma “o homem novo,
criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade” (Ef 4, 24). O
blasfemador de outrora permaneceria para sempre prostrado num amoroso
reconhecimento de sua derrota: “Jesus Cristo veio a este mundo para salvar os
pecadores, dos quais sou eu o primeiro. Se encontrei misericórdia, foi para que
em mim primeiro Jesus Cristo manifestasse toda a sua magnanimidade e eu
servisse de exemplo para todos os que, a seguir, nEle crerem, para a vida
eterna” (I Tm 1, 15-16).
Saulo converte-se em Paulo
Com a mesma radicalidade com que outrora se apegara ao
judaísmo, Saulo abraçava agora a Igreja de Cristo. A graça respeitara a
natureza, conservando as características próprias de sua personalidade que
viriam mais tarde a contribuir na formação da escola paulina de vida
espiritual. A partir desse momento, o Saulo convertido, o novo Paulo, só se
moveria por um único ideal, que tomava todas as fímbrias de sua alma e dava
verdadeiro sentido à sua existência: “Quanto a mim, não pretendo, jamais,
gloriar-me, a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo
está crucificado para mim, e eu para o mundo” (Gl 6, 14).
Doravante essa Cruz – na qual Paulo não apenas considerava
os sofrimentos do Salvador, mas via, sobretudo, os esplendores da Ressurreição
– seria para ele o rumo de sua vida, a luz dos seus passos, a fortaleza de sua
virtude, o seu único motivo de glória. Esse amor, que num instante operara a
sua transformação, o impelia agora a falar, a pregar, a percorrer os confins do
mundo a fim de conquistar almas para Cristo, arrancando-lhe, do fundo do
coração, este gemido: “Ai de mim se eu não evangelizar!” (I Cor 9, 16).
Por esse amor estava disposto a enfrentar todas as
tribulações, a suportar os piores tormentos, fossem de ordem natural, como
também os de ordem moral: “Muitas vezes vi a morte de perto. Cinco vezes recebi
dos judeus os quarenta açoites, menos um. Três vezes fui flagelado com varas.
Uma vez apedrejado. Três vezes naufraguei, uma noite e um dia passei no abismo.
Viagens sem conta, exposto a perigos nos rios, perigos de salteadores, perigos
da parte de meus concidadãos, perigos da parte dos pagãos, perigos na cidade,
perigos no deserto, perigos no mar, perigos entre falsos irmãos! Trabalhos e
fadigas, repetidas vigílias, com fome e sede, frequentes jejuns, frio e nudez!
Além de outras coisas, a minha preocupação cotidiana, a solicitude por todas as
igrejas!” (II Cor 11, 23-28).
Ele havia se proposto, antes de tudo, à glorificação de
Jesus Cristo e da Sua Igreja, e isto constituía para ele o suco essencial, o
norte de sua vida. A este respeito comenta São João Crisóstomo: “Cada dia ele
subia mais alto e se tornava mais ardente, cada dia lutava com energia sempre
nova contra os perigos que o ameaçavam. […] Realmente, no meio das insídias dos
inimigos, conquistava contínuas vitórias, triunfando de todos os seus assaltos.
E em toda parte, flagelado, coberto de injúrias e maldições, como se desfilasse
num cortejo triunfal, erguendo numerosos troféus, gloriava-se e dava graças a
Deus, dizendo: ‘Graças sejam dadas a Deus que nos fez sempre triunfar’ (II Cor
2, 14).”
Apóstolo das Gentes
Assim, pouco a pouco, por meio de suas viagens apostólicas e
das numerosas cartas através das quais sustentava na Fé seus filhos
espirituais, Paulo ia assentando os fundamentos da Esposa Mística de Cristo.
Nem mesmo internamente havia de lhe faltar adversários: por vezes, entre os
próprios cristãos, surgiam conceitos errôneos, como o de querer obrigar os
pagãos convertidos a praticar os costumes da Lei Mosaica. A esse respeito Paulo
levou sua ousadia até o ponto de discutir com o próprio Apóstolo Pedro,
“resistindo-lhe francamente, porque era censurável” (Gl 2, 11).
Pedro aceitou com humildade o ponto de vista de Paulo e
apressou-se em colocá-lo em prática. Mas os cristãos que haviam espalhado suas ideias
pelas igrejas da Galácia não o imitaram, acrescentando ainda que a justificação
provinha estritamente do cumprimento da Lei. Nada poderia ser tão nocivo para a
Igreja nascente do que tais enganos, e Paulo logo o percebeu. Decidiu deixar
por escrito toda a doutrina sobre esse ponto, e o fez com tanta segurança e
clareza que deduz-se tê-la recebido dos lábios do próprio Jesus.
Assim, a epístola dirigida aos Gálatas é um escrito
polêmico, sem receios de apresentar a verdade tal como ela é: “Ó insensatos
gálatas! Quem vos fascinou a vós, ante cujos olhos foi apresentada a imagem de
Jesus Cristo crucificado? […] Todos os que se apoiam nas práticas legais estão
sob um regime de maldição” (Gl 3, 1.10). E pouco antes, afirmava: “Nós cremos
em Jesus Cristo, e tiramos assim a nossa justificação da fé em Cristo, e não
pela prática da lei” (Gl 2, 16).
São Paulo e os gregos
Se Paulo teve de enfrentar oposições dentro de seu próprio
povo, viu-se também contestado pelos gregos, que apresentavam objeções de teor
completamente diferente, mas não menos perigosas. A Grécia, principal centro da
cultura naqueles tempos, orgulhava-se da fama de seus pensadores e de ser o
berço da filosofia. Ora, a palavra e a pregação trazidas por Paulo, “longe
estavam da eloquência persuasiva da sabedoria” (I Cor 2, 4), como ele mesmo
afirmava.
Assim, não raras vezes tornava-se ele alvo do desprezo ou
objeto de vergonha para os convertidos. Ele pouco se importava com as ofensas feitas
à sua pessoa, mas receava que seus discípulos fizessem eco a ideias tão vãs ou
viessem a sucumbir, por medo das humilhações. Por isso, escrevia ele aos fiéis
de Corinto, cidade onde principalmente essas falsas doutrinas haviam encontrado
aceitação: “A linguagem da Cruz é loucura para os que se perdem, mas para os
que foram salvos, para nós, é uma força divina” (I Cor 1, 18).
Não era esse, porém, o pior dos obstáculos encontrados por
Paulo na Grécia. Afundados na devassidão e na desordem moral, os gregos haviam
elaborado, ao longo dos tempos, uma justificativa para os seus maus costumes,
negando a ressurreição dos mortos. Alguns mesmo, como Epicuro de Samos (†270
a.C.), chegaram a afirmar que a alma humana é material e mortal.
No próprio Evangelho percebemos lampejos dessa candente temática quando os saduceus – que, por influência helênica, não acreditavam na ressurreição – se aproximaram de Jesus para pô-lo a prova, mediante uma pergunta capciosa (cf. Lc 20, 27-39). A discussão, como vemos, vinha de longa data e se erguia como principal empecilho para o desenvolvimento do apostolado paulino.
No próprio Evangelho percebemos lampejos dessa candente temática quando os saduceus – que, por influência helênica, não acreditavam na ressurreição – se aproximaram de Jesus para pô-lo a prova, mediante uma pergunta capciosa (cf. Lc 20, 27-39). A discussão, como vemos, vinha de longa data e se erguia como principal empecilho para o desenvolvimento do apostolado paulino.
Talvez Paulo, em seus tempos de fervor fariseu, já tivera de
enfrentar os mesmos saduceus a esse propósito. Agora, porém, como cristão,
possuía o argumento da Ressurreição de Cristo e contava com o poderoso auxílio
da graça.
Grande Apóstolo da Ressurreição
As dúvidas expostas pelos gregos, quando não a oposição
aberta, servir-lhe- iam de estímulo para aprofundar-se mais na doutrina da
ressurreição e deixá-la explicitada para os séculos futuros. Assim escreveu ele
aos coríntios: “Ora, se se prega que Jesus ressuscitou dentre os mortos, como
dizem alguns de vós que não há ressurreição? Se não há ressurreição dos mortos,
nem Cristo ressuscitou. Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e
também é vã a vossa fé. […] Se é só para esta vida que temos colocado a nossa
esperança em Cristo, somos, de todos os homens, os mais dignos de lástima. Mas
não! Cristo ressuscitou dentre os mortos como primícias dos que morreram!” (I
Cor 15, 12-14; 19-20).
Custoso era, para aqueles gregos de vida
desregrada, ter de assimilar esses princípios. Aceitando a ressurreição da
carne, ver-se-iam forçosamente convidados a uma mudança de costumes e a
abraçarem um modo de pensar e de comportar-se condizente com essa esperança.
Mas até mesmo suas relutâncias contribuiriam para o bem, como afirma o próprio
Paulo: “Oportet et haereses inter vos esse” (I Cor 11, 19) – é necessário que
haja partidos, ou heresias, entre vós. Impelido pelas circunstâncias, Paulo se
transforma no grande Apóstolo da Ressurreição.
Cordeiro e leão ao mesmo tempo
Nem tudo, porém, eram combates para o incansável Paulo. Se
face ao erro e à falta de fé ele mostrava todo o seu ardor combativo e sua
intransigência, em relação aos bons deixava entrever um fundo de alma
extremamente afetuoso e compassivo, ordenado segundo a caridade de Cristo.
Nesta admirável conjugação de virtudes, na aparência opostas, Paulo
assemelhava-se ao Divino Mestre, sempre disposto a perdoar ou pronto a
repreender, a ser Cordeiro e Leão ao mesmo tempo.
Em sua carta aos fiéis de Filipos, que se
inquietavam por seus sofrimentos e suas necessidades, assim escreve: “Deus me é
testemunha da ternura que vos consagro a todos, pelo entranhado amor de Jesus
Cristo!” (Fil 1, 8). E ainda, aos mesmos gálatas, que antes invectivara a
respeito de seus desvios, escrevia mais adiante: “Filhinhos meus, por quem de
novo sinto dores de parto, até que Cristo seja formado em vós, quem me dera
estar agora convosco” (Gl 4, 19).
São Paulo, segundo Bossuet
Difícil é exaltar o Apóstolo das Gentes em espaço tão
exíguo. A pluralidade estonteante de seus feitos, o poder de sua voz e o
alcance de sua ação apostólica, cujos frutos até hoje alimentam a Igreja,
deixam em embaraço qualquer escritor. Por isso recorremos à incomparável eloquência
de Bossuet, que assim descreveu o ímpeto da pregação do Apóstolo:
“Este homem, ignorante na arte do bem-falar, de locução rude
e de acento estrangeiro, chegará à esmerada Grécia, mãe de filósofos e
oradores, e, apesar da resistência mundana, fundará mais igrejas do que Platão
teve discípulos. Pregará a Jesus em Atenas, e o mais sábio dos oradores passará
do Areópago para a escola deste bárbaro. Continuará mais adiante em suas conquistas,
e abaterá aos pés do Senhor a majestade das águias romanas na pessoa de um pró-cônsul,
e fará tremer em seus tribunais os juízes diante dos quais fora citado. Roma
ouvirá sua voz, e um dia aquela velha mestra sentir-se-á mais honrada com uma
só carta do estilo bárbaro de São Paulo, dirigida a seus cidadãos, do que por
todas as famosas arengas que outro dia escutara de Cícero.”
A prisão em Jerusalém
Sim, Roma, haveria de ouvir sua pregação e suas ruas
calçadas de grandes pedras seriam pisadas pelos pés do Apóstolo. Esses pés,
entretanto, arrastariam pesadas correntes que lhe tolheriam a liberdade dos
movimentos. Acusado pelo ódio de seus concidadãos, por causa de sua fidelidade
a Cristo, Paulo fora entregue à justiça romana. Se seu corpo suportava as
cadeias e os grilhões, sua alma sentia pesar sobre si o suave jugo de Cristo.
Prisioneiro do Espírito (cf. At 20, 22), Paulo recebera, à noite, esta
revelação: “Coragem! Deste testemunho de Mim em Jerusalém, assim importa também
que o dês em Roma” (At 23, 11).
Obediente à inspiração recebida, Paulo exclamará no tribunal
do governador Festo: “Estou perante o tribunal de César. É lá que devo ser
julgado. […] Apelo para César!” (At 25, 10-11). Querendo desfazer-se de caso
tão complicado, que envolvia assuntos da religião judaica, Festo apressou- se
em satisfazer o desejo do preso, mandando-o para Roma, algemado e sob a guarda
do centurião Júlio.
O primeiro período de pregação em Roma
Durante a viagem, Paulo não perdia a oportunidade de
anunciar o Evangelho em todos os lugares por onde passava. Após várias
dificuldades ao longo da travessia e enfrentar um naufrágio, fez escala em
Siracusa, na Sicília, e dali foi conduzido a Reggio (cf. At 28, 12-13).
Uma vez chegado à capital do Império e instalado em prisão
domiciliar, Paulo realizava um anseio que havia tempos acalentava no coração,
como ele mesmo o expressara aos cristãos de Roma: “Daí o ardente desejo que eu
sinto de vos anunciar o Evangelho também a vós, que habitais em Roma” (Rm 1,
15). Dois anos haveria de durar seu doloroso cativeiro, mas ele, como afirma
São João Crisóstomo, “considerava como brinquedo de criança os mil suplícios,
os tormentos e a própria morte, desde que pudesse sofrer alguma coisa por
Cristo”. Aproveitou o tempo para pregar o Reino de Deus (cf. At 28, 31),
escrever numerosas cartas às comunidades da Grécia e da Ásia, as chamadas
Epístolas do cativeiro.
Mas a Providência pedia de seu Apóstolo ainda mais alguns
anos de abnegação e fadigas, a ele que suspirava pela morte, considerando-a um
lucro para ganhar a Cristo (cf. Fl 1, 21).
Novas viagens e retorno à capital do Império
Libertado por um decreto jurídico, Paulo ainda visitaria
Creta, Espanha e novamente as conhecidas igrejas da Ásia Menor, pelas quais
tanto se dedicara. Afinal voltaria a Roma para onde se sentia atraído, talvez
por um secreto pressentimento da proximidade da “coroa da justiça” (II Tm 4, 8)
que ali o aguardava.
Sobre o trono dos césares sentava-se então o terrível Nero,
cuja crueldade, aliada a um orgulho patológico, já fizera sua fama. Era
conhecido o ódio que votava aos cristãos, e Paulo não passou despercebido à
perspicácia dos espiões do tirano.
Acusado como chefe da seita, foi preso pela polícia imperial
e lançado no Cárcere Mamertino, onde, segundo uma antiga tradição, já se
encontrava Pedro. Nesse escuro subterrâneo, de estreitas dimensões e teto
baixo, o Pontífice da Igreja de Cristo e o Apóstolo das Gentes estiveram
acorrentados a uma mesma coluna. Assim, unidos numa mesma Fé e esperança,
estavam ambos amarrados pelas cadeias do amor ao Rochedo, que é Cristo (cf. I
Cor 10, 4).
O martírio de São Paulo
Chegou por fim o dia em que Paulo deveria “ser imolado” (II
Tm 4, 6). Para ele a morte pouco significava, pois já se achava morto para o
pecado e vivo para Deus (cf. Rm 6, 11). Uma entranhada e exclusiva união o
ligavam a seu Senhor. Não era ele mesmo que vivia, mas sim Cristo quem nele habitava
(cf. Gl 2, 20) e operava.
Condenado à morte, Paulo, por ser cidadão romano, não podia,
como Pedro, sofrer a pena ignominiosa da crucifixão, mas sim a da decapitação,
e esta devia dar-se fora dos muros da cidade. Conduzido por um grupo de
soldados, o Apóstolo arrastou seus pesados grilhões ao longo da Via Ostiense e,
depois, pela Via Laurentina, até alcançar um distante vale, conhecido pelo nome
de Aquæ Salviæ.
Ali, entre a vegetação daquela região pantanosa, o sublime
imitador de Jesus Cristo selava seu testemunho com o próprio sangue. Sua
cabeça, ao cair no solo sob o golpe fatal da espada, saltou três vezes, fazendo
brotar em cada um dos pontos uma fonte de água borbulhante. Este fato, se não
comprovado pela História, baseia- se numa piedosa tradição confirmada pelo nome
de Tre Fontane, que ostenta o mosteiro trapista construído naquele local.
“Combati o bom combate”
Paulo morrera, mas sua monumental obra apostólica,
fundamentada na caridade que consumira sua vida, continuava viva e produziria
ao longo dos tempos abundantes frutos para a Igreja. Até o último alento, sua
vida não fora senão uma grande luta. Luta de entusiasmo e de entrega, de
desprendimento e de heroísmo; luta para levar o Evangelho a todas as gentes,
confiando sempre na benevolência de Cristo.
Os piores vagalhões da vida não puderam atingir
o seu tabernáculo interior. Sua firmeza, semelhante à imobilidade de um rochedo
batido pelas ondas do mar, mantinha-se inalterável em meio às maiores angústias
e agonias, certo de que nem a vida nem a morte o poderiam separar do amor de
Cristo (cf. Rm 8, 38-39).
E uma vez concluído o combate, percorrida toda
a sua carreira e chegado ao termo de sua peregrinação terrena (cf. II Tm 4, 7),
o Apóstolo apareceu ante o olhar admirado da humanidade, em toda a sua estatura
de gigante da Fé, transmitindo para os séculos futuros esta mensagem: “Por ora
subsistem a fé, a esperança e a caridade – as três. Porém, a maior delas é a
caridade. A caridade jamais acabará!” (I Cor 13, 13.8).
Estando preso em Roma, o incansável Apóstolo
não deixou de pregar, e obteve a conversão de incontáveis almas. Posto em
liberdade no início do ano 64, dirigiu-se à Espanha e à Ásia. Retornando a
Roma, foi preso novamente, desta vez com São Pedro.
Ficaram eles na prisão mais antiga de Roma, o
Cárcere Mamertino, local impregnado de bênçãos, que comove a quantos por lá
passam. Com efeito, como não se impressionar ao contemplar, logo nos primeiros
degraus da estreita escada que leva ao calabouço, a marca do rosto do Príncipe
dos Apóstolos, milagrosamente impressa na parede de pedra? E que emoção ao ver
no canto da cela a fonte que brotou do solo, possibilitando aos Apóstolos
batizarem os próprios carcereiros, convertidos pelo seu exemplo e pregação!
No final de sua heroica vida, pôde o Apóstolo
das Gentes cantar este hino de triunfo do varão que sente a consciência limpa
na hora do encontro com o Supremo Juiz: “Combati o bom combate, terminei a
minha carreira, guardei a fé. Resta-me agora receber a coroa da justiça, que o
Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia, e não somente a mim, mas a todos
aqueles que aguardam com amor a sua aparição” (11).
Grandiosa foi sua vida, tal será também sua
morte. Sendo cidadão romano, São Paulo não podia ser crucificado. Foi, assim,
decapitado pela espada, no ano 67. Conta-nos a tradição que sua cabeça, rolando
ao solo, saltou três vezes e fez brotar três fontes que podem ser vistas ainda
hoje na Igreja de San Paolo alle Tre Fontane, na via d’Ostia, em Roma.
(Revista
Arautos do Evangelho, Jul/2008, n. 79, p. 26 à 33)
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